Quanto mais protegemos as crianças mais as aprisionamos. De tal maneira que muitas acabam por passar menos tempo ao ar livre do que os detidos em estabelecimentos prisionais. A mudança é urgente.
E se lhe dissessem que 70% das crianças portuguesas passam menos tempo ao ar livre por dia do que os 60 minutos recomendados para os detidos em prisões? Provavelmente não acreditaria, mas é verdade. A conclusão é de um estudo levado a cabo pela marca Skip no nosso país e vem reforçar as convicções de vários especialistas, segundo os quais é necessário fazer algo para mudar a situação com urgência. Preocupada com o desenvolvimento infantil a marca publicou nas últimas semanas um vídeo online que alerta justamente para esta questão.
Uma das vozes que mais se tem feito ouvir nesta matéria é a de Carlos Neto, professor catedrático e investigador da Faculdade de Motricidade Humana (FMH). Nas suas palavras, esta tendência de manter as crianças em espaços fechados “retira-lhes a possibilidade de poderem viver uma infância feliz, por não experienciarem situações corporais que são próprias da idade e fundamentais na formação da sua personalidade e identidade”.
O Professor revela que “são crianças muito protegidas e aprisionadas corporalmente quanto a possibilidades de confronto com o espaço físico exterior”, lembrando ainda que esta não é uma situação exclusiva de Portugal: “Verifica-se de forma generalizada por todo o mundo e tem vindo a assumir dimensões muito preocupantes na perspetiva dos direitos e da saúde das crianças.”
Mas como é que se chegou a este ponto? Carlos Neto não hesita em apontar o dedo àquilo que designa por “pandemia do controlo adulto das experiências de movimento na infância” ou “terrorismo do não”. As consequências são as que se adivinham e o professor, a trabalhar com crianças há mais de quatro décadas, enumera-as: “Promove uma pobreza de cultura motora, criando condições para que se instale uma iliteracia física, prejudicial ao desenvolvimento de estilos de vida saudável nestas idades e ao longo da vida.”
Embora admita a importância do estabelecimento de regras na educação dos mais novos, realça que “os pais atuais têm uma preocupação excessiva, e por vezes obsessiva, em não permitir que os filhos corram riscos em situações de movimento ou de atividade física”. O problema é que, ao impedirem o confronto com o risco físico, estão a “contribuir para um aumento do sedentarismo e analfabetismo motor na infância”. Sublinha ainda que “aprender a mover o corpo em liberdade e sem constrangimentos é uma necessidade crucial para o desenvolvimento motor, cognitivo, emocional e social da criança”.
Questionado sobre o contexto que levou pais e educadores a aprisionarem as suas próprias crianças, o professor elenca diversos motivos. Entre eles, o “desaparecimento da rua enquanto local de jogo”, muito por via da crescente urbanização das cidades, aumento do tráfego automóvel e ausência de políticas públicas dirigidas ao bem-estar na infância. Ao mesmo tempo, assiste-se ao “excessivo alarmismo dos órgãos de comunicação social sobre os perigos a que as crianças estão sujeitas”, levando à redução da permissão dada pelos pais para que se desloquem sozinhas.
O que os pais não sabem – ou facilmente esquecem – é que esta via da proteção excessiva está longe de ser benéfica para os filhos: “Brincar é ganhar confiança em si próprio e é também o melhor caminho para evitar o acidente, ou seja, quanto mais risco mais segurança.”
Ainda assim, o fundador e antigo presidente da Sociedade Internacional para Estudos da Criança não tem dúvidas em afirmar que “hoje temos melhores pais, melhores famílias, melhores crianças e melhor sociedade do que há anos atrás. O que está em causa é o aparecimento de novos problemas associados à educação das crianças do nosso tempo que podem estar a colocar em perigo a sua identidade, autonomia e necessidades básicas de desenvolvimento biológico e cultural”, alerta.
Para inverter a situação são necessárias mudanças urgentes. Entre elas, Carlos Neto destaca “mais políticas públicas dirigidas à infância” e também “mais coragem política” na adoção de modelos que permitam conciliar melhor o trabalho dos pais com a escola e a família.
Na sua perspetiva, “a angústia da gestão do tempo dos filhos instalou-se na vida quotidiana dos pais, tornando-se um dos fenómenos mais intrigantes do nosso século”. Como resultado, os mais novos estão a ser vítimas daquilo que designa como um “inconsistente modelo de organização da vida social”. Pais cansados e em stress por excesso de horas de trabalho, por um lado, e crianças com agendas excessivas de tempo escolar e extraescolar, por outro, não permitem pensar na existência de tempo disponível para uma relação equilibrada e saudável do tempo para brincar entre pais e filhos”, afirma. E acrescenta mesmo que “de forma paradoxal, no nosso tempo passeiam-se mais os cães do que as crianças”.
Defende que “as cidades devem ser amigas das crianças e desenvolver projetos adequados às suas necessidades de desenvolvimento”. Para tal, considera que é necessária uma “nova cultura governamental das cidades e do seu planeamento”, contribuindo para a qualidade de vida das populações. Algo que já está “em grande desenvolvimento em muitas cidades do mundo”, nomeadamente nos países escandinavos, sublinha.
Comparar o tempo de recreio dos detidos em estabelecimentos prisionais com o tempo de recreio escolar é, para Carlos Neto, uma “forma inteligente de demonstrar o que está a acontecer na infância atual”. Apoiado em diversos estudos sobre o assunto, lembra que está demonstrado que “crianças ativas no recreio são aquelas que aprendem melhor dentro da sala de aula”, revelando mais capacidade de atenção e concentração. Por esse motivo, entende que “necessitamos de valorizar o tempo de intervalo escolar no projeto educativo das escolas públicas e privadas” e os “recreios devem ser estruturados de forma a ser aliciantes para as crianças”.
Lamenta que o tempo de recreio escolar seja uma espécie de “terra de ninguém”, acabando por ser “pouco valorizado pelos adultos”. “É caso para dizer que as crianças aprendem muito no recreio e deveriam brincar mais dentro da sala de aula”, sintetiza, explicando que “cerca de 90% dos reclusos presos por homicídio foram privados de brincadeira na sua infância”.
Este artigo foi desenvolvido ao abrigo da parceria entre o Observador e a SKIP.
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